segunda-feira, 20 de maio de 2013

Robson Gracie vs Arthur Emídio




Róbson Gracie x Arthur Emídio

...Arthur Emídio só queria saber de capoeira. Tentei arrumar-lhe emprego, recusou. Era um artista, era um bailarino, era um matador. Não iria prostituir-se à toa em escritórios e balcões, tinha o seu ofício, a sua arte, o seu gênio.
– Está bem – eu lhe disse. – Vou lhe apresentar ao Hélio Gracie.
Os olhos de Emídio faiscaram como as pedras lisas do Rio Cachoeira sob os raios de sol.
– Você jura? O Gracie? O grande Gracie? O campeão do vale-tudo?
– Em pessoa.
– Você se dá mesmo com ele?
– Assim. Unha e carne. Ele me chama de Baiano. É Baiano pra cá...
– Ah.
Mas não foi fácil, a praça estava cheia de espertalhões, de falsos lutadores, de capoeiras que se dariam melhor em capoeiras de galinhas do que em ringues de tábuas duras, sem tatame, sem proteção atrás das cordas, ringues improvisados em barracões, ringues que pareciam montados no meio de um circo mambembe de praça de subúrbio.
– Olhe aqui, Baiano, nada feito – me disse Hélio Gracie.
– Mas campeão...
– Desculpe, Baiano, mas esses nordestinos são frouxos.
Às vezes têm físico, têm força e raça, mas não sabem dar um golpe, ignoram a técnica.
– O Emídio é diferente.
– Querem aparecer à nossa custa, ganhar uns trocados.
Esse negócio de capoeira é folclore baiano.
– Campeão, eu só lhe peço uma oportunidade para o Emídio.
– Oportunidade? Sem um teste na minha Academia ele não decola, não fatura nem pra média-com-pão-e-manteiga.
– Pois é o que eu quero, campeão. Uma exibição particular na Academia que é pro Emídio mostrar o seu valor.
O Hélio Gracie gostava de mim, marcou a exibição sem o menor entusiasmo, queria me ser agradável e olhe lá. O meu cartaz com ele era grande, mas confesso que tive de apelar para o meu amigo dentista, o Jaime, a quem ele não recusava favores. Consentiu, porém com uma condição:
– O teste é comigo mesmo.
Uma honra inesperada para Arthur Emídio, que conhecia de cor e salteado a fama de Hélio Gracie e que não cessava de contar a luta Gracie versus Kimura: o japonês meteu-lhe uma chave-de-braço que, se fosse levada até o fim, tirava tutano, deixava o osso exposto, mas o Gracie não bateu pedindo penico. Pois saibam, o Arthur Emídio não me decepcionou. Melhor dizendo, abafou, roubou o espetáculo, assombrou o pessoal que esperava uma luta-treino de vinte ou trinta segundos com o Gracie triunfante e o baiano estatelado no chão. O jogo de Emídio era bonito: dançava, gingava, saltava, parecia esgrimir, suas esquivanças eram de espadachim ou de toureiro, sacudia as pernas de cabeça para baixo, apoiando-se no chão com as palmas das mãos, os pés pareciam amassar a cara de Gracie, mas Emídio freava a tempo o ímpeto, fazia-os recuar frações de polegada ou passar rente ao rosto encovado e ardente do mestre do vale-tudo. Ensaiou martelos, ensaiou rabos-de-arraia, mostrou que sabia bailar para bater, mas ficou na simulação, no simulacro, no meio do caminho, assim como quem não quer, mas vai chegando e prova que se for preciso ele completa a rasteira, aplica o martelo sem dó nem piedade, faz a armada-de-peito, não fica apenas no gesto e na intenção. Os dois de quimono movendo-se um ao redor do outro, o Hélio testando, oferecendo brechas, o Emídio se excedendo nos seus lances de ousadia.
– Este menino é bom – confirmou Hélio Gracie, enquanto enxugava com a manga larga do quimono o suor do rosto.
E a luta foi marcada. A Academia Gracie encontrava enfim um rival digno para um dos seus alunos: Arthur Emídio, capoeira baiano, versus Robson Gracie, o mais baixinho, porém, o mais troncudo e o de temperamento mais orgulhoso, um rapaz taciturno, filho de Carlos, sobrinho de Hélio. Chamaram o Carlos Renato (cronista), o jornal Última Hora vendeu durante uma semana inteira, com chamadas na primeira página, entrevistas e artigos, "A Luta do Ano", "A Capoeira versus Jiu-Jitsu em Combate Mortal no Palácio de Alumínio", compre o seu ingresso antes que se esgote nas mãos dos cambistas. Eu era o manager de Arthur Emídio. Manager e treinador. Só que se dizia "toalhinha" na época. Numa luta dessas o estado emocional conta muito, é meio caminho andado, por isso larguei o meu consultório por alguns dias, tratei de preparar o meu amigo e conterrâneo, Arthur Emídio no plano físico e no plano psicológico.
– Arthur, e se o Robson tentar lhe aplicar uma tesoura...
– Tem problema não, Zito. Eu me esquivo com um salto e respondo com um martelo fulminante.
Mestre Bimba lhe tinha ensinado o golpe. É, o baiano estava preparado. Fui adquirindo confiança, anunciei a luta, convidei amigos, arrastei pequenas multidões, os jornais fizeram o resto. O jornal "A Luta Democrática" lascou um manchetaço no dia da luta: "Hoje tem sangue no ringue". Seu concorrente,o jornal, O Dia, mais comedido, onde pontificava Santa Cruz Lima com sua cabeleira branca, falou em "Vale-Tudo da Selvageria", garantindo que o capoeira baiano e o representante da Academia Gracie iam entrar no ringue para bater de verdade, um dos dois podia sair carregado. Um coronel da Aeronáutica quis proibir a Luta do Ano, o cronista Carlos Renato lembrou a época dos ringues na Av. Passos e na Gávea, quando muitos lutadores, os mais felizes, saíam cegos ou com braços e pernas quebrados, fraturas expostas. Os amigos me perguntavam alvoroçados:
– O capoeira é bom mesmo, Zito?
– É o maior da Bahia e o maior do Brasil.
– Foi ele que desafiou Róbson?
– Não leu os jornais? Vai ser mole. Ele quase acaba com o Hélio Gracie na Academia.
– O Hélio Gracie? – e eles arregalavam os olhos.
Chegou o dia. Emídio garantiu em entrevistas que o Robson levaria um martelo no peito, assim que ficassem frente a frente no ringue, "e aí eu elimino ele". Washington Kruschewsky Sá, que estudava para advogado, ponderou em voz escandalizada: "Mas aí você pode matá-lo, pode ser processado!" Arthur Emídio sorriu. "Não quero matar ninguém. Vou bater só pra aleijar". Manuel Leal de Oliveira, mais prevenido, consultou uma baiana que jogava búzios nos Arcos da Lapa, ali na altura da Mem de Sá. "A luta será decidida numa fração de segundo", disse a baiana, lendo a mensagem esparramada nos búzios. Mesmo assim Manuel Leal não parou o dia inteiro de repuxar um fio do canto do bigode. Na semana seguinte, me contaram que um macumbeiro foi à tarde ao Palácio de Alumínio. Chamado por quem? Eu é que não fui. Chegou, olhou, fez as suas mandingas, as suas invocações, e "grudou" o ringue para logo mais à noite. O jornalismo esportivo do Rio começou a chegar, os trens desciam sem pingentes para os subúrbios, mas em compensação chegavam apinhados à Central. O Palácio de Alumínio, cheio de ambulantes que vendiam churrasco de carne de gato, pedaços de melancia e rodelas de abacaxi, pipocas e sanduíches de mortadela, parecia uma festiva estação ferroviária à espera do comboio com o presidente da República. O Palácio brilhava dentro da noite, era um Coliseu terceiro-mundista engolindo gente por todas as güelas, gente que ia pedir a morte do gladiador vencido.
Entramos no Palácio de Alumínio e eu levei o maior susto da minha vida, sentindo o coração murchar dentro do peito, um frio no pé da barriga, uma pressão doida na nuca. Era a sensação típica do sujeito que passa a vida numa das últimas filas de cadeiras do teatro, a observar o drama ou a comédia, a ver o filme, a se excitar com o rebolado da Virgínia Lane ou da Nélia Paula, e de repente se vê empurrado para o palco, tem diante de si um mar de rostos, os rostos das primeiras filas são os únicos visíveis, os outros formam indistinta e ondulante maré, e no entanto todos os rostos das primeiras filas são os únicos visíveis, os outros formam indistinta e ondulante maré, e no entanto todos olham para a gente, seguem nossos movimentos, nossos menores gestos, esperam o que vamos dizer. Luzes jorravam em cima de mim, eu, o "toalhinha" de Arthur Emídio, eu, o treinador do capoeira baiano que ia enfrentar o temível Robson Gracie, o pessoal da Academia sentado em cadeiras especiais do circo ou ali mesmo, num canto do ringue, o Arthur despindo o quimono, esgalgo moleque nas margens do Rio Cachoeira, cintura fina e músculos tensos, sorriso radiante, ah, o sorriso largo, os dentes alvos, ele está deslumbrado, pensei, é a sua primeira oportunidade, os flashes dos fotógrafos estouram, amanhã ele estará nas primeiras páginas, uma câmera de tv já foi assestada, Robson é mesmo baixo, porém muito grosso de tronco e de pernas e tem a cara fechada, uma cara de quem sente raiva, um jeito soturno de animal ferido, o juiz chama os lutadores para o centro, a multidão silencia, uma fração de tempo, dois segundos, três segundos, nem sei mais, Arthur Emídio ainda sorria, o Palácio de Alumínio era um Anhembi, um Maracanã, naquele dia de Vasco x Flamengo! Durou pouco, quem sabe foi mesmo uma fração de segundo, o pequeno Robson, que tinha sangue quente, pegou Arthur Emídio pelos ombros, rodou Arthur Emídio no meio do ringue e o estrangulou por trás, o rapaz ainda não tinha malícia, era ainda um ingênuo, ainda um deslumbrado, caiu nas tábuas com um baque que todos ouviram no Palácio e então Robson Gracie, cheio de raiva, quebrou-lhe os dentes a pontapés e eu bati encerrando a luta, joguei fora a toalha, a multidão berrava "baiano frouxo", eu gritei para o Jaime (meu amigo) "vou embora, você cuide do Arthur", a multidão vaiava "baiano viado", só me lembro que saí correndo, todos os meus amigos estavam ali, o mulherio de Copacabana, moças lindas, gritavam o nome de Robson, tive a certeza que uma meia-dúzia de homens queria me pegar.



Twitter: @marcmagapi



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